quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O PRIMEIRO LIVRO DE MANUEL BANDEIRA

Intitulado A Cinza das Horas, é meio funesto, pois representa o estado de alma sob o efeito de uma grave doença, a tuberculose, da qual se livrou.
Publicou o livro em 1917, sem intenção alguma de tornar-se o grande literário brasileiro.
- "desejava apenas dar-me a ilusão de não viver inteiramente ocioso", ele disse.
São dessa época:


DESENCANTO

Eu faço versos como quem chora
De desalento. . . de desencanto. . .
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente. . .
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
- Eu faço versos como quem morre.


CREPÚSCULO DE OUTONO

O crepúsculo cai, manso como uma bênção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura inânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale... o horizonte purpúreo...
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.

Fonte: Passeiweb

OS DESENHOS DE ZICA BERGAMI

"LAMPIÃO DE GÁS", DE ZICA BERGAMI



É importante preservar a letra correta, principalmente desta valsa muito popular, de autoria de Zica Bergami, compositora, cantora, desenhista e escritora nascida em Ibitinga/sp, em 1913 e falecida em 2011.
A música retrata o bairro Bom Retiro, em São Paulo, por volta de 1920. 
Foi gravada por Inezita Barroso e lançada em 1958. 
  


O PROFESSOR ANTONIO BENATTI NAS LEMBRANÇAS DE RAÍ



































segunda-feira, 3 de agosto de 2015

"TEMPO DAS ÁGUAS"



DO VALO GRANDE
DO MAR PEQUENO

DO RIBEIRA

DOS IGUAPENSES...









Este volume divide-se em três partes, ou melhor, em três episódios.
No primeiro, Afonso Schmidt conta a história de um triângulo amoroso com imprevisível desfecho, romance que se passa na capital dos paulistas.
No segundo, uma crônica histórica sobre a cidade de Iguape.
No último, Afonso tece uma pequena biografia do poeta Laurindo José da Silva Rabelo, um carioca, apelidado de "Lagartixa" e considerado por todos o "Bocage" brasileiro.


De Lagartixa os versos a seguir:

"O que fazes, ó minha alma?
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?


Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!".


A segunda parte do livro intitulada"O VALO GRANDE", transcrevemos aqui; é uma crônica histórica importantíssima para quem curte a história de Iguape e de toda a sua região.

"Iguape foi fundada nos meados do século XVII, embora se encontrem referências à Vila de Nossa Senhora das Neves de Iguape em datas anteriores. A verdade, porém, é que o maior ou menor rigor cronológico não influi na história do Valo Grande, que está a pedir um romancista à maneira de Paulo Setúbal.
Fundada ao mesmo tempo de outras cidades brasileiras, Iguape não apresenta as suas características, que são: ruas estreitas e tortuosas, pracinhas acanhadas e becos que, às vezes, serviam de monturo. É diferente.
Depois de três séculos de existência, ainda guarda muita coisa do remoto passado.
Tem ruas largas e praças que ainda hoje nos parecem imensas, embora estejamos habituados a ver, em outras cidades, a engenharia urbanística arrasar meia dúzia de quarteirões do tempo do General Pilatos para, em seu lugar, abrir um logradouro indispensável ao arejamento do bairro.
Pois Iguape, sem que lhe alarguem o arruamento, poderá cobrir-se de arranha-céus. E ninguém, em são consciência, poderá lamentar-se da estreiteza de suas vias públicas.
É evidente que os reinóis fundaram a cidade, e não como tantas outras localidades de priscas eras, mas com a certeza de que ela viria a ser, em futuro próximo, um dos maiores centros populosos do Brasil.
Desde os primeiros anos, já o seu nome era conhecido além-mar; na Metrópole, à beira do Tejo, falava-se em Iguape como em Santos ou na Bahia.
Para tanto, devem ter contribuído as esperanças que os portugueses punham na mineração.
Os esclarecidos colonizadores fizeram estudar toda a região e muito esperavam desta parte do litoral paulista.
Conta Ernesto Guilherme Young que um dos primeiros pontos do País, onde se extraiu ouro, foi na vizinhança de Iguape.
Naquele tempo - tempo da mina... - o povo iguapense usava ouro em pó nas transações comerciais.
Era uma terra de tumulto.
No século anterior, o aventureiro Moschera tinha praticado tais tropelias que Frei Gaspar da madre de Deus, nascido ao que parece em Cubatão, pra lá da ponte, houve por bem desmenti-las, escrevendo que o homenzinho era "um ser de razão", ou da fantasia, não passava de um fabuloso Hirco-Cervo... Isso, traduzido hoje, queria dizer: Moschera nunca existiu.
A tradição, que não pode ser confirmada pela História, porque os livros do tombo sumiram, atribuiu-lhe a famosa guerra entre Iguape e São Vicente, ali por 1537. Mas isso não vem ao caso. É um assunto que escapa a esta ligeira crônica.
Limitamo-nos a prosseguir, dizendo que a vila progrediu, lentamente, apesar dos cálculos otimistas dos colonizadores. A mineração, segundo parece, produzia 12.000 oitavas anuais. Mas o ouro em pó, como é do seu feitio, fugia pelos vãos dos dedos de muita gente...
Houve época - conta o citado historiador de Iguape - que o governo, para por cobro a tão valioso extravio, mandou edificar uma casa á margem do Ribeira em lugar onde os mineiros, descendo em canoas, eram obrigados a passar; aí estabeleceu um guarda-fiscal, cujo fim era revistar os mineradores e registrar a quantidade de ouro que eles traziam para a vila.
O lugar onde foi estabelecida essa guarda é até hoje conhecido pelo nome de Registro.
A mineração nas catas passou.
Seguiu-se a ela, no entanto, uma nova febre de ouro que dura ainda em nossos dias. Mas é bonita e inofensiva.
No litoral, muitos sabem, por ter sonhado ou por ter "recebido" aviso, onde se encontra um tesouro enterrado. Referem-se a meia voz a certa tapera, a certo pé de jambolão, aos alicerces de certa casa velha da rua que vai ter ao Morro da Espia.
Nas compridas tardes de Iguape, como de Cananeia ou de Xiririca, dois praianos sentados, pitando macaio, debaixo de virente chapéu- de- sol, conversam horas esquecidas sobre os "seus" tesouros.
E não é só gente pobre e inculta que tem o "seu" pote de esmeraldas; muitos ricos, viajados, também escondem na alma a doença da terra. São cavalheiros íntegros, circunspectos, a par dos progressos do seu tempo. Falam com desembaraço e acerto sobre os problemas de cada dia. Mas, quando se lhes aponta determinado barranco, coberto de samambaias, mudam completamente. Seus olhinhos brilham, suas mãos se fazem inquietas, esperam a oportunidade...
A tradição está cheia dessas maravilhas. Indicam-se a dedos felizardos que de um dia para outro enriqueceram, inexplicavelmente. E guardam segredo sobre a origem de seus cabedais. Quando se lhes fazem perguntas inconvenientes, desconversam. E assim se precatam porque o governo é exigente, quer para si a parte do leão em cada tesouro descoberto. Por isso, bico calado. Toda reserva é pouca.
Os pobres vão para a praça, sentam debaixo dos frondosos pés de chapéu-de-sol. Pitam e sonham. E eles tem a ciência de viver docemente, docemente...
Há cento e tantos anos, Iguape já era uma vila bem organizada. Tinha administração regular, ciosa de seus deveres. Mas, pouco antes, dera-se a independência, inaugurara-se o império.
Nas atas da Câmara local, já se fala de um camarista "homem Republicano". A política ferve. uma oposição ardida põe as manguinhas de fora.
Em 1824, entre os pedidos feitos ao governo pela Câmara de Iguape, inclui-se "hum Juiz letrado" que com saber e imparcialidade administre a Justiça e a faça respeitar contra os ataques de certos mal-intencionados que entendem por liberdade constitucional a faculdade que se arrogam de poder insultar as autoridades, membros da Justiça, quando não concordam com seus arbítrios e maldades.
"Este mal que parece ser comum em muitas partes (diz o aludido documento), também se tem experimentado aqui, resultando disso que os homens de bem se escusam e fogem de servir em Cargos Públicos".
Assim, fica-se informado sobre a situação política da vila nos trinta anos que se seguiram à Independência. Tanto mais que naquele papel já se fala na construção de "hum vallo" ligando o Rio Ribeira ao Mar Pequeno.
Eis aí um assunto que surgiu pequenininho como uma semente. Cresceu ao longo dos anos. Hoje, ameaça a cidade. E será difícil prever as suas consequências nos dias do futuro.
"Aos doze dias do mês de fevereiro de mil oitocentos e vinte e cinco, quarto da Independência e do Império, nesta Vila de Iguape, comarca de Paranaguá e Coritiba, em casas da Câmara e paços do Concelho, onde vieram presentes o Juiz Presidente José Gonçalves Maia com os oficiais adiante nomeados e sendo aí para efeito de fazerem vereança e cuidarem do bem comum do Povo. Na mesma, foi apresentado um requerimento e a ele anexas as condições que respeitam à abertura de um valo do Porto do Ribeira para o mar Pequeno, desta Vila, cujo requerimento foi apresentado por parte de José Inocêncio Alves e de José Antonio dos Anjos, etc. etc.".
Os administradores de Iguape, naquele tempo, não podiam prever os meios de transporte que, sucessivamente, foram aparecendo.
O trem de ferro, para eles, naquela época, como o navio a vapor, eram sonhos de gente acordada.
Quanto ao automóvel e ao aeroplano, nem é bom falar.
Só as canoas a remo ou a varejões desciam e subiam o Ribeira e seus afluentes.
O porto do Ribeira, núcleo urbano fluorescente, comunicava-se com a cidade, que era porto marítimo, por uma estrada reta e curta, na qual as carroças e troles trafegavam puxados por animais.
Desejava-se ligar o porto fluvial ao porto marítimo por um canal.
O assunto foi levado à Câmara, como vimos, e discutido.
As sessões começaram ásperas, tornaram-se tumultuosas. A opinião contrária, sustentada por um camarista, fez prosélitos. Resistiu heroicamente até ao fim. Aceitava a ideia do canal, mas discordava da sua localização, preferindo que o mesmo contornasse o Morro da Espia, que fica no fundo da cidade, a fim de que esse acidente topográfico representasse poderosa muralha contra a erosão, pois, de outra forma, viriam os desbarrancamentos. E os anos que se seguiram lhe deram razão.
Segundo parece, desde os primeiros tempos de Iguape, sua população manifestou esses desejos de escavar um valo entre o porto marítimo e o porto fluvial, ao longo do caminho de dois quilômetros, por onde trafegavam carroça e troles.
A primeira referência à pretendida obra foi registrada pelo historiador Alfredo Guilherme Young nos arquivos que pesquisou; data do último quartel do século XVIII.
Nesse documento, informa-se que os habitantes da vila estavam dispostos a concorrer para a obra que lhes parecia "redonda de utilidades".
Depois de vagas providências no mesmo sentido, foi posta uma pedra em cima, até 1805. Nessa data, porém, a Câmara de Iguape dirigiu um ofício a Antonio José da Franca e Horta, governador de São Paulo, lembrando a necessidade urgente do referido canal e adiantando que, para a sua construção, tinha sido levada a efeito uma coleta, a qual rendera 302$000 entre 36 habitantes da região que, além de dinheiro, deram "as suas escravaturas para o serviço".
No mesmo papel, foi sugerido que o povo trabalhasse por esquadras e cada esquadra dez dias, "dando-se-lhe o sustento necessário e fazendo-se as despesas pela quantia que contribuem os mesmos moradores".
Em Iguape, no século passado, não se conhecia a inquietação peculiar de nossos dias. Nos assentamentos da vila, não consta que alguém tivesse morrido de pressa... Nada mais natural, portanto, que o projeto dormisse mais quinze anos numa gaveta.
Em 19 de agosto de 1820, a Câmara descobriu o calhamaço e assoprou-lhe a poeira. E, quatro anos depois, já num Brasil independente e imperial, foi dirigida uma representação ao Presidente da Província, como resposta à circular em que s. exa. pedia informações acerca dos melhoramentos mais necessários ao distrito.
Foram então sugeridos ao Governo três modos de levar a efeito a abertura do Canal: 1.o). obrigando o povo a fazê-lo de mão comum; 2.o). encarregando uma pessoa de abri-lo com capitais seus e por preço fixo, estabelecendo um imposto sobre o povo para o pagamento da soma despendida e competentes juros; 3.o). contratando com uma pessoa para abri-lo e conservá-lo, com a condição de o contratante cobrar durante o espaço de dez anos "de todos os gêneros que passarem por este canal, uma taxa igual à importância que pagavam os donos dos gêneros para transportá-los em carros de bois entre o porto do Ribeira e a Vila".
Os moradores da região foram convocados pela Câmara, a fim de darem o seu parecer. Umas reuniões não se realizaram, outras não deram o resultado que se esperava, por dissídio de alguns homens que possuíam dinheiro ou escravos. Felizmente, ou infelizmente, como convier, a Câmara chegou a um ponto decisivo e o valo ia ser iniciado. Só faltava uma coisa a resolver: o traçado.
A Câmara achou que o canal deveria seguir o caminho mais curto entre os dois pontos. Esse caminho mais curto era, precisamente, a estrada de carroças, carros de bois e troles, que faziam o serviço entre o Mar Pequeno e o Rio Ribeira. Como alguém protestasse, alegando que essa obra, realizada em terreno arenoso, traria desbarrancamentos. foram ouvidos diversos engenheiros.
Em relatório apresentado ao Governo pelo capitão-de-fragata Carlos Lourenço Dunkward, com apreciações do brigadeiro Daniel Pedro Muller, relativamente a outros melhoramentos projetados no litoral, ambos opinam favoravelmente pela abertura de um canal para dar comunicação entre o Ribeira e o Mar Pequeno.
A Câmara resolve em sessão, diante da resistência dos opositores, "pedir hum Engenheiro, para destinar lugar mais próprio e suficiente para esta obra".
O Governo atendeu ao pedido: mandou o engenheiro tenente- coronel Eusébio Gomes Barreiros estudar a questão e dar o seu parecer. É evidente que ele opinava para que fosse aberto o canal pelo norte da vila, pois por isso sofreu alguns desgostos que a ata não registra quais foram.
Como já dissemos, os interessados na abertura do canal estavam então divididos em dois grupos. A maioria desejava que o canal fosse aberto do lado sul, "pouco mais extenso e igualmente plano como aquele designado, sem os gravíssimos inconvenientes de privação dos recursos de primeira necessidade qual o da água que farta esta vila e os da pedra-saibro e barro para os edifícios, ficando-se na dependência de ponte que será difícil conservar-se nas inundações periódicas do Ribeira". No entanto, se for aberto no lado sul da vila, "não faltarão contribuintes, como alguns já se ofereceram para abrir à sua custa, quando por outro lado não se possa efetuar".
Em 1826, estando em Iguape, numa comissão referente às sesmarias e terrenos da Marinha, o chefe de divisão Paulo Freire de Andrade, a Câmara a ele se dirigiu, pedindo a sua opinião sobre o debatido assunto.
É a opinião de um profissional.
Ouçamo-lo: "Se o terreno desde o Rio Ribeira até ao da Icapara resistisse à impetuosidade da corrente, eu diria que o Canal deveria passar pelo meio da Vila; mas não resiste, nem pode resistir; logo, deve passar ao Norte ou ao Sul dela".
A Câmara ficou, pois, avisada do perigo. E isso por quem, tanto pelo cargo como pelos conhecimentos, estava à altura de fazê-lo.
Os trabalhos de abertura do canal, pelo lado norte, foram iniciados na semana anterior ao dia 27 de agosto de 1827, dia em que foi paga a primeira turma de trabalhadores empregados nessa obra. Os salários pagos eram de 180 a 240 réis por dia para os homens livres ou escravos. O feitor ganhava 320 réis diários. A obra esteve paralisada durante cerca de três anos.
Em 7 de agosto de 1829, por ordem de São Paulo, a Câmara reuniu-se em sessão extraordinária para tratar do prosseguimento da obra. Até então, a abertura do canal estava sendo feita à custa da população.
Essa demora na construção era ocasionada pela falta de recursos e, talvez, por dificuldades criadas pela oposição. Esta ainda lutava, procurando todos os meios possíveis para que o canal fosse aberto do lado que julgava mais apropriado.
Sua tenacidade diante do erro transparece nos documentos do arquivo.
Em 20 de julho de 1830, o vice-presidente da Província oficiou à Câmara de Iguape, pedindo "huma circunstanciada informação do estado de adiantamento ou atraso em que se acha o serviço de abertura do canal".
A Câmara nomeou uma comissão para estudar as obras.
Da resposta, conseguida pelo historiador a quem recorremos, constam informações dignas de registro aqui: o governo posterior a agosto de 1829 mandara continuar os trabalhos e para tal fim remetera a soma de um conto de réis, que figura como empréstimo da Fazenda Nacional, e os engenheiros brigadeiro João da Costa Ferreira e tenente-coronel Eusébio Gomes Barreiros haviam nivelado o terreno e calculado que as águas do Rio Ribeira, na embocadura do canal, ficavam seis palmos acima do nível do Mar Pequeno.
Os anos que se seguiram foram de luta para a consecução de fundos destinados à conclusão da obra.
Em fevereiro de 1836, a comissão oficiou à Câmara, informando-a do mau êxito da sua missão e lembrando-lhe que "o único meio mais eficaz e terminante para obviar todas as dúvidas e chamar os cidadãos ao grêmio dos seus deveres era impor-se uma taxa razoável no gênero arroz, que mais se exporta deste País".
Foi criado um imposto de vinte réis por alqueire de arroz. Mas logo depois os negociantes, sentindo-se por demais onerados, protestaram com palavras amargas contra a iniciativa.
Apesar disso, a taxa continuou a ser cobrada. E em outubro de 1839, ainda se falava na conclusão do dito canal.
A obra deve ter sido dada por terminada nos doze anos que se seguiram. Mas o valo não ficou em condições de dar passagem franca a canoas. Só em 1851 um documento anuncia que esse canal "dá um trânsito quase constante".
Em 24 de novembro de 1854, a Câmara de Iguape dirigiu ao presidente da Província um ofício... pedindo outro canal. " ... A necessidade da abertura de um canal que comunique o Ribeira com o Mar Pequeno, o qual deve ser do lado norte da cidade, visto que a longa e dolorosa experiência tem demonstrado que o atual Canal do lado Sul da mesma não satisfaz o objecto que tiveram em vista os seus capciosos autores".
Vemos que, terminado o canal sul, após vinte e cinco anos de sacrifícios de toda sorte, o mesmo já era dado por inútil, e já se pedia outro com o mesmo fim. Mas, infelizmente, esse canal não foi apenas inútil. Ele passou a representar dali por diante o drama da cidade.
O Valo Grande que, há um século, liga o porto do Mar Pequeno ao do Ribeira mede cerca de dois quilômetros de comprimento. Sua largura inicial foi de algumas braças, mal dando para passagem de duas canoas que se encontravam, navegando em sentido contrário. Não satisfez às necessidades da população de Iguape, como de toda a região do Ribeira, que contribuiu com dinheiro e trabalho para a sua construção. Não se limitou a ser inútil, mas tornou-se prejudicial, chegando a representar uma ameaça para a linda cidade litorânea.
Seus construtores lembram a história do aprendiz de feiticeiro: foram mexer com forças que não souberam ou não puderam subjugar, quando elas se desencadearam.
E essas potestades continuam na sua guerra contra a vila.
O canal, que era a bem dizer um riacho, foi-se alargando, aprofundando, comendo as margens, criando enseadas que, de um ano para outro, se ligam e levam de roldão casas, hortas, até quarteirões inteiros.
Só mesmo a disposição do governo do Estado ou da República poderá por cobro ao drama secular dos iguapenses.
Hoje, a técnica dispõe de novos meios que os nossos antepassados ignoraram. Assim mesmo, para sermos justos, devemos salientar que desde os primeiros dias da derrocada surgiram providências que, infelizmente, não foram levadas até ao fim, embora algumas delas tenham sido bem inspiradas, capazes de interromper os sucessivos desmoronamentos do terreno arenoso.
E o pior de tudo é que a terra da erosão continua a ser levada para longe, transformando, prejudicando, a geografia do litoral.
Vejamos: ao longo do continente, por quarenta quilômetros, estende-se a Ilha Comprida, que vai até Cananeia. Apertado entre o continente e essa ilha, está o Mar Pequeno, e no final de ambos está a barra de Icapara, que dava entrada até para navios de certo calado.
Em 1876, os vapores e embarcações a vela, que demandavam o porto de Iguape, ancoravam, em frente ao cais do chamado Porto Grande, a uma distância de cem metros da cidade. No entanto, em 1903, segundo lemos, já eram obrigados a ancorar em frente ao Morro da Espia, distante mais de um quilômetro do Porto Grande.
Daí para cá, a situação tem piorado de ano para ano: a barra de Icapara apresenta uma profundidade média de dez pés e a barra do Ribeira alargou-se em prejuízo da profundidade, perdendo a sua navegabilidade.
A princípio, os danos causados pelo canal não deram uma ideia aproximada dos que viriam depois, incalculavelmente maiores.
No entanto, entre 1875 e 1890, as águas do Rio Ribeira, procurando o caminho mais curto para alcançarem o mar, atiraram-se com ímpeto pelo Valo e, dia por dia, foram vencendo a débil resistência do terreno arenoso, até que a largura do canal pode comportar o volume normal das águas desse rio.
A população foi tomada de pânico.
Todos os que tinham meios para retirarem-se de Iguape arrumaram as malas e partiram.
Entre muitas famílias que, nessa ocasião ou em outra igualmente angustiosa, fugiram da cidade, citaremos duas, das de maior relevo - as de Mâncio e de Toledo.
Em nossa passagem por Iguape, admiramos os seus velhos e nobres sobradões, que ainda hoje chamam a atenção dos turistas pela imponência das linhas.
O sobradão de Mâncio é hoje o Hotel São Paulo e dos Toledo, aliás parecido com o primeiro, pertence ao Santuário.
Essas duas famílias, que eram as mais ricas, ocupando posições na administração do Município, foram-se embora para longe, às pressas, amedrontadas pelo diabólico Valo.
Em 1888, conta Young, o governo mandou estudar os meios para por cobro aos danos que o Valo estava causando. Desse estudo, incumbiu os engenheiros Domingos Sérgio Saboia e Silva e Luis Martinho de Morais.
Ficou resolvida a construção de uma barragem, para impedir a ação corrosiva das águas do Rio Ribeira, e de comporta, para dar passagem às embarcações durante as marés.
Em 1889, foram iniciadas as obras. Mas ( talvez em consequência das comoções produzidas pela mudança de regime) os trabalhos foram interrompidos.
Ensaiou-se também uma espécie de revestimento da margem do rio, ao pé da cidade. Tal serviço, levado a efeito pelo engenheiro Martinho de Morais, no fim do século passado, deu bons resultados.
Além dessas iniciativas, foram colocadas pedras em grande quantidade, sem simetria, nas proximidades dos desbarrancamentos. O que se deduz é que o canal estava disposto a levar até às últimas consequências a sua missão de dar passagem mais curta às águas do rio. Conseguido isso, como que adormeceu. Mas está imensamente largo e profundo.
De uma margem a outra mede 250 metros. Para atravessá-lo, há um serviço de "ferry-boat". E o fato se torna ainda mais curioso quando lembramos que o Valo, ao ser aberto, sua largura não ia além de poucas braças, sua profundidade não excedia a alguns palmos...
Continua, porém, a obra da erosão.
A cada enchente, no tempo das chuvas, muitas famílias, que moram nas proximidades, arrumam a trouxa e vão dormir em casa de parentes e amigos.
Ao regressar no dia seguinte, não tem certeza de encontrar a casa. E não é infundada presunção, pois as águas, atirando-se com fúria contra a margem do lado da cidade, cavam baías e, num dado momento, correm imaginária régua sobre os barrancos, arrastando consigo muitas casa com hortas e criações.
No lugar da propriedade só fica, frequentemente, nova reentrância no terreno ... para ser retificada não se sabe quando.
Tal é a situação de Iguape nos nossos dias.
Os aprendizes de feiticeiros ainda não conseguiram subjugar as forças cósmicas que desencadearam.
Resta-nos o consolo de que o Valo Grande, como há muitos anos passou a ser chamado, é um dos maiores centros de pescaria de manjuba.
Nas suas margens, erguem-se estabelecimentos que se destinam a industrializar esse peixe do Ribeira.
Por outro lado, as pessoas sentimentais acham esse Valo incomparável. Quem já o atravessou de "ferry-boat" numa noite de plenilúnio, jamais o esquecerá.
A claridade da lua sobre as águas escuras e trêmulas, às vezes com os reflexos de árvores e construções que nelas se espelham - é o que se possa chamar de maravilha...
Mas a cidade graciosa e hospitaleira continua a ser comida pelas águas.
Em Iguape, terra de tesouros enterrados, onde a gente encontra sonhos pela rua como estrelas do mar, corre uma versão curiosa. Certo praiano que todos conhecem já viu nas margens do Valo Grande um enorme tatu de ferro. O bicho lendário fossa o barranco, com focinho blindado. Perfura túneis. Alarga-os em grutas. Liga as cavernas entre si. E assim vai solapando a terra. Ninguém sabe até onde ele irá nos sinistros propósitos.
Por isso, nas enchentes, quando o Valo arrebata um grupo de casas ribeirinhas, há quem lembre a história do tatu de ferro, já conhecido pelo nome de bicho "Mironga", que não tem pena da cidade nem de seus habitantes.
Como pedir clemência ao bicharoco da história da Carochinha, quando os governos do Estado e da República, empenhando-se em obras dispendiosas e arriscadas, ainda não atenderam aos apelos do litoral onde, ao longo de cem anos, o Valo voraz e insaciável se banqueteia com a cidade ilustre?
Iguape é uma cidade de cultura e de trabalho.
Uma cidade que abastece de certos produtos não só o litoral sul mas também o planalto.
Uma cidade-Santuário, para a qual convergem todos os anos romeiros de muitos estados e até, segundo corre, do Paraguai e da Bolívia.
Depois da Monarquia, parece, nenhum governo quis enfrentar as ameaças do tigre desaçaimado que é o Valo Grande.
No entanto, seria justo socorrer a cidade litorânea, uma das primeiras que se povoaram, que cataram ouro, que construíram os alicerces da nossa História.
É preciso, enquanto é tempo, impedir que Iguape se transforme num lago à beira de um morro.
Os paulistas do 5.o centenário da cidade, em 2054, visitando o outeiro do Bom Jesus, encontrarão uma pedra com estes dizeres: - " Neste lugar, existiu uma cidade; desapareceu em consequência do erro de alguns e da imprevidência de muitos".

FIM.

LEITURA MANUSCRIPTA

Este é um livrinho que adoro; está bem velhinho e, o mais incrível de tudo é que, assim como todos os livros, também tem a sua história.
O livrinho chama-se "Leitura Manuscripta" - Lições colligidas por B. P. R.
Quem foi B. P. R.?
Trata-se de um livro escolar, como se insere de uma das primeiras páginas.
Pertenceu a Benedicto Lopes e Avelino José de Miranda.
Alunos ou professores?
Quem teriam sido esses cidadãos que deixaram seus nomes e grafias impressos nesse livrinho?
A data, pelo menos a reportada pelos dois, é de 16 de outubro de 1919, mas com certeza o livrinho é de muito antes disso.
A cidade onde a dupla morava?
Porto Feliz.
Alguém sabe de alguma coisa?
Porque essas pessoas tiveram uma vida, casaram-se, tiveram filhos, deixaram netos, bisnetos, tetranetos...
É emocionante!




Frente e verso












 

PAULO VANZOLINI, COMPOSITOR E ZOÓLOGO

 
 

Nascido em 1924 e Falecido em 2013